"Sem Coração" emociona ao enxergar o amadurecer na criação de consciência social de uma adolescente (2024)

"Sem Coração" emociona ao enxergar o amadurecer na criação de consciência social de uma adolescente (1)

Existe um senso de liberdade consciente em "Sem Coração" que é tão comovente, quanto revelador. Nas belas cores de uma paradisíaca praia de Maceió se esconde os contrastes que separam um grupo de adolescentes unidos naquele que seria o último verão antes de tudo mudar. É fascinante como os diretores Nara Normande e Tião acessam a intimidade dos seus personagens numa história sobre amadurecer num mundo que resiste a corrupção da pureza.

Naquela praia de Alagoas, no ano de 1996, um grupo de jovens experimentava as descobertas inerentes a essa fase da vida sem restrições, ou dispersões. Ali todos eram iguais. Todos se apoiavam. Todos compartilhavam experiências. Todos valorizavam a união que eles construíram. Mas algo estava prestes a acontecer. Tamara (Maya de Vicq) ia se mudar para Brasília para se preparar para auniversidade. Só que ela estava relutante. Uma sensação de dúvida que fica evidente quando Tamara cruza o caminho de Sem Coração (Eduarda Samara), uma jovem misteriosa que ganhou esse apelido por ter uma cicatriz na altura do peito. Algo conectava elas. Algo que as duas sequer sabiam lidar.

"Sem Coração" hipnotiza ao celebrar a liberdade na era do offline. São adolescentes experimentando as transformações nessa fase da vida de forma intuitiva. Sem vigilância constante. Sem padrões impositivos. Sem as dispersões de um mundo conectado que muitas vezes mais afasta do que aproxima.A beleza, aqui, está na fotografia em cores vivas que realça a tropicalidade nessa história de amadurecer. A beleza está no cuidado dos diretores em valorizar as expressões dos seus radiantes atores em planos fechados que estreitam o elo entre público e personagens. A beleza está também na naturalidade de um texto que acessa a verdade daqueles meninos e meninas em diálogos profundos.

É impossível não se sentir transportado para a rotina dos personagens. É impossível experimentar a liberdade nostálgica deles e não entender a origem das dúvidas de Tamara. Nara Normande e Tião evitam interferir no destino dos protagonistas. Os cineastas se recusam a limitar o filme ao peso de uma jornada. Eles não querem precipitar o fim. Mas os dois sabem que algo ali estava prestes a mudar. E em "Sem Coração" a mudança está diretamente ligada as descobertas da protagonista.

Os realizadores partem do olhar privilegiado da adolescente com a chance de mudar o seu mundo para entender a realidade daqueles que ficarão para trás. O que era belo e inocente logo ganha um caráter angustiado. O que era igualitário se torna desigual. O que era pacífico se torna hostil. O amadurecer não está unicamente ligado a descobertas sexuais. Ou as dúvidas que surgem numa promessa de futuro amedrontadora. O amadurecer ganha um caráter social quando notamos aquilo que separa Tamara do seus amigos: um abismo de possibilidades.

Todos são adolescentes. Todos experimentam as mesmas dificuldades no amadurecer. Todos se apoiam sem distinção. Mas o mundo ao redor deles é uma ameaça ao paraíso que eles construíram. O fim da infância, aqui, está diretamente ligado a criação de consciência de classe. Só que "Sem Coração" se recusa a trazer a desigualdade do mundo real para a realidade daqueles personagens. Os cineastas usam o inocente olhar privilegiado de Tamara para acessar a intimidade dos amigos dela.

É sintomático que o "mistério" em torno de Sem Coração, a personagem, esteja diretamente ligado aos hábitos da adolescente. Porque ela, ao contrário dos indivíduos daquele unido grupo, não tinha tempo para os prazeres da adolescência. A jovem que trabalhava enquanto os colegas da faixa etária dela se divertiam era um incógnita por parecer viver num outro "fuso". O que Tamara queria descobrir, Sem Coração já sabia. E o filme comove ao estreitar os laços entre as duas à medida que uma passa a reconhecer a beleza na outra. Um estudo de personagens (no plural) cuidadoso que nunca esbarra em clichês ou estereótipos.

"Sem Coração" se deixa levar pelo olhar igualitário de Tamara, mesmo consciente que a realidade dessas duas adolescentes apontava para caminhos distintos. E faz isso enxergando padrões nas diferenças. Sempre com a sensibilidade de invadir espaços íntimos disposto a entender aquelas personagens. A relação entre Tamara e a mãe, vivida pela expressiva Maeve Jinkings, revela a relutância de menina em se jogar para o mundo. "É normal ter medo de algo que a gente quer tanto fazer", pergunta a adolescente, num insight que todos nós já tivemos em algum momento na transição da infância para ajuventude.

Já a relação entre Sem Coração e o pai, um pescador viúvo amável e solitário, revela a pressa de uma jovem consciente que precisava ajudar. "Pescar não garante o futuro", diz ele alimentando uma errática expectativa que a sua filha terá um destino diferente do seu. A reposta que a mãe não é capaz de dar e a alternativa que o pai não é capaz de oferecer unem Tamara e Sem Coração num ponto de intersecção sintomático. Só que os cineastas nunca se limitam a ele. Isso porque existe também atração entre as duas. É real. É físico. Époético.

E ela vai além da superfície. Por mais que o filme aborde as descobertas sexuais daqueles personagens com um senso de honestidade muito divertido, Nara Normande e Tião se recusam a reduzir a relação das duas ao frisson hormonal. O elo entre elas nasce das dúvidas. Da pressa que move a independente Sem Coração. Da inocência que "protege" a afetuosa Tamara. É breve, mas definitivo. São experiências que mudam tudo.

Só que quando a realidade invade a perspectiva das duas, "Sem Coração" perde um pouco dessa naturalidade. O filme se revela mais ansioso do que o ideal ao abordar temas como a hom*ofobia nos anos 1990 e a criminalidade como "alternativa" a crise econômica no Brasil no começo da era FHC. Um período de esperança para alguns e incertezas para muitos. Era também o amadurecer de um país recém-saído da Ditadura... Tudo o que diz respeito ao querido Galego (Alaylson Emanuel), por exemplo, carrega uma natureza dramática que o filme não é capaz de explorar em sua máxima potência.

É dele, ainda assim, a cena mais visceral do longa. Um rompante de violência explícita que "poluí" aquele cenário paradisíaco precipitando a criação de consciência que todos ali pareciam querer retardar. E é isso que emociona em "Sem Coração". No fim, todos só queriam prolongar algo que estava prestes a mudar. É por mais um dia no paraíso. Só mais umdia...

“Sem Coração” está disponível na Netflix.

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